Cuidar de você é o primeiro passo para mudar sua vida.

Vamos caminhar juntas nesse processo?

Salvador: racismo e aquilombamento em uma tarde de domingo

Uma tarde de domingo do verão soteropolitano na Barra, a beira-mar, com bares e restaurantes tão cheios quanto o mar, e uma Barra totalmente diferente da que experimentei na última semana. 

Antes, se você está chegando agora, preciso contextualizar contando que sou nômade e busco as melhores oportunidades para viver a minha vida comum em lugares que sequer imaginei estar quando era menina! 

Você pode conhecer um pouco mais da minha história aqui

Exu abriu os caminhos e eu caminhei para uma hospedagem de frente para o mar, ao lado do Farol da Barra, aonde lembro que chorei de emoção na primeira vez que pisei, há 2 anos.

Eram lugares que eu via na televisão no carnaval e nunca imaginei que eu me traria até aqui! 

Quem dirá morar neste local por 17 dias, depois de morar no Santo Antônio, bairro famoso e controverso no centro histórico, mas em condições duvidosas (renderia outra crônica).

Essa experiência, além da vida em si, tem me possibilitado olhar para a multiplicidade das coisas, das gentes, de mim… para o engessamento dos nossos pontos de vista e o esquecimento de que “um ponto de vista é a vista de um ponto”. 

Neste domingo de chuva, fiquei em casa enquanto os diversos sons se misturavam: o mar, quase inaudível, era abafado pelos sons das vozes das pessoas conversando, dos pratos sendo servidos, cervejas abertas, partilhas e sorrisos e o povo trabalhando na rua. 

Artistas de rua, como sempre e como parte da riqueza imaterial dessa cidade e do mundo através dela, fazendo sua performance, entretendo o turista sentado em sua mesa, tomando sua cerveja gelada a preço justo e dando alguma cor à sua vida sem saber “o que é real e o que é só o fim de semana?” 

Um desses turistas, um homem de pele clara, mas não branco (não acredito que ele saiba disso), ao ver Fernando, homem preto, artista de rua, chegando com sua caixa de som desligada para trabalhar, tratou logo de air da sua mesa, aonde estava sozinho tomando uma cerveja e usando fones de ouvido, e foi falar pra ele não o incomodar com sua caixa que iria atrapalhar a sua concentração!

Fernando me contou isso chorando de soluçar!

O homem estava em um bar cheio e gente, perto do farol da Barra em um domingo em que sons diversos se misturavam quando a voz de Fernando bradou com a força de Xangô combatendo tantas injustiças e dando voz a quem segue sendo silenciado há gerações e gerações. 

“Eu sou um artista de rua.

Me respeite!

Estou trabalhando e você está me desrespeitando.

Não estou lhe pedindo nada!

Acha que vou pedir esmola?

Não!

Eu trabalho e você está me desrespeitando e desrespeitando meu trabalho.”

Quando olhei pela janela, de longe pude ver o corpo dele em sofrimento, com sua alma estremecida, sentindo dores ancestrais, com os dias difíceis que Fernando enfrenta certamente com sua arte, seu axé, seu sorriso alegrando o mundo com sua performance perfeita de Michael Jackson. 

Ao final vou deixar o link do vídeo no Instagram com o que consegui filmar. 

Fernando atravessou a rua e, num desabafo profundo, começou a chorar depois de ter gritado muito para defender tantas camadas de sua existência enquanto o turista, pardo, tomava sua cerveja com uma dose extra de “vergonha na cara” – eu espero! 

Os demais presentes na rua, clientes dos bares, pessoas que estavam trabalhando na rua, transeuntes…todos, aplaudiram Fernando de pé!

Foi então que um menininho preto, de uns 2 anos, se aproximou e entregou a ele uma garrafa d’água para hidratar sua garganta depois da luta, lhe deu um abraço e voltou sorrindo para os braços de sua mãe. 

Vocês têm noção de quantos símbolos têm nessa cena?

Você só vai sentir o que estou sentindo, se tiver raízes tão profundas a ponto de tocar “o inferno”, como diriam os cristãos, e parafraseando o europeu C.G. Jung, pensador da psicologia em que pauto meu trabalho, ressignificando para a minha identidade latinoamericana e das pessoas que acompanho.  

As águas rolaram nos olhos de todos os presentes e muitas pessoas se aproximavam para abraçá-lo e ampará-lo. 

A Bahia é a multiplicidade do existir! 

De uma cena de racismo tão cruel e degradante, o cenário se converteu em um aquilombamento tão sagrado e profundo que só quem esteve presente sabe o que é viver.

Mesmo que não seja presente na Barra naquela tarde, mas presente na pele de quem sabe de onde vem essa dor e também esse amor, que é mais ancestral que a dor, e nos lembramos disso em cada célula, ainda que cansadas de lutar para existir. 

Como se precisasse estar sempre em alerta, justificando sempre a sua presença no mundo, o que lhe foi dado por direito: viver como todo mundo que pisa nessa terra.

Desci e filmei ele até que fizesse uma pausa em sua performance, que foi aplaudida por todos porque era muito boa mesmo.

Feita com seu corpo trêmulo, sua voz embargada e seu coração dolorido por tantas coisas que lhe atropelaram naquela tarde na Avenida Oceânica. 

Ao me aproximar, perguntei se poderia lhe dar um abraço e ele, se curvando em si mesmo, para acolher sua dor, chorou como precisava chorar diante de tamanho desacato. 

Eu não poderia dizer nada, apenas estar ali presente.

Outras pessoas que trabalham na rua e o conhecem há anos, se aproximaram e começaram a dizer para ele não parar sua apresentação:

– Levante a sua cabeça! – disse a ele lembrando do meu Babá Robson que tanto me ensina em cada conversa, mesmo as mais aleatórias, contando de sua filha, minha amiga deusa Ynaê, falando para as mulheres no samba quando vê que estão sambando com algum constrangimento perceptível em seu corpo, por mais alegria que pareçam demonstrar, sem lembrar de que não devemos abaixar a cabeça para ninguém! 

Ynaê, apenas sambando com seu axé lá em cima enquanto movimenta sua alma, lembra mulheres de se livrarem de suas couraças emocionais impostas pelo patriarcado e impressas em nossos corpos. 

Uma entidade encarnada a minha amiga!

Enquanto conversamos, o tal homem aproveitou para “sair à francesa”, mas foi denunciado pelo povo. Ainda assim, saiu e seguiu sua vida, agora com uma aula de letramento racial que espero que ele nunca esqueça e que possa se questionar sobre sua existência, mas duvido veementemente disso! 

Fernando, depois de acolhido pelo público, continuou seu trabalho fazendo a sua performance com a alma. 

A arte sempre me atravessa! 

Dessa vez ela me fez sentí-la em tantos níveis que não sou capaz de descrever!

Mas logo ele tirou o figurino de Michael Jackson que colocou para alegrar a rua e levar o sustento pra casa e saiu, em silêncio, com estrondos em sua alma. 

Impotente diante do choro de uma dor tão profunda de um homem preto, tudo o que posso fazer é compartilhar pelos vídeos e pela escrita o que vi da janela de um lugar onde nunca imaginei estar, mas sou grata.

Dias antes, um fotógrafo italiano que estava trabalhando em uma reportagem sobre a violência policial em Salvador para um grande jornal europeu, estava conversando comigo na praia a noite, aqui no mesmo lugar, enquanto tomávamos banho de mar, desfrutávamos da praia durante a semana, a noite porque nossa rotina de trabalho e responsabilidades não tinha nos permitido pegar praia de dia.

Na conversa, depois de me falar sobre a dureza das imagens de seu trabalho, me falou também sobre como Salvador é incrível:

“não existe outra cidade no mundo em que se possa encontrar praias tão maravilhosas em meio a um grande centro urbano e tomar banho a noite e ainda respira tanta cultura e diversidade!”

Até me imaginei, por um devaneio de um segundo, eu filmando tudo o que vejo, entre belezas e durezas na Pequena África, e compartilhando o quanto, apesar de tantas durezas cruéis que se passam nesta cidade, nos lugares turísticos ou não, Salvador é mesmo a cidade dos encontros.

A primeira capital brasileira é, definitivamente, a cidade onde a cultura se encontra com a ancestralidade, com a benção de suas belezas naturais exuberantes, com a luta e o suor do seu povo e uma espiritualidade e intelectualidade pulsante em cada ser, ainda que isso tenha sua sombra de violências por não falhar um sistema que foi feito para oprimir, não para libertar.

E, por fim, a arrogância de quem vê a vida de um ponto de vista privilegiado, mas que ainda assim não é capaz de calar o brado retumbante de Fernando, representando a luta que maltrata o corpo e a alma do povo preto. 

Fernando, que os Orixás possam te trazer alento em seu coração e sua alma e que você possa registrar, acima de tudo, o aquilombamento que se levantou aqui na Barra em torno de você. 

Que o amor e a justiça sejam registrados em seu corpo e sua alma, para curar as feridas deixadas por “mais um caso isolado” de racismo. 

Os corpos pretos seguem sendo torturados, por mais que resistam, com as sequelas físicas que romper padrões deixa. 

Fernando foi embora, em silêncio, e logo passou um trio-elétrico com alguns turistas dançando axé em coreografias milimetricamente ensaiadas, outros saiam ou chegavam da mesa do bar, o domingo seguia como de costume, ainda que eu ouça ecoar as palavras forte de Fernando até agora.

A Bahia é lugar de alegria e luta. 

É lugar de resistência e existência.

É lugar das multiplicidades da existência que minha mente, infelizmente ainda colonizada, não consegue enxergar porque ainda está treinada para olhar os opostos e não as conexões, as misturas e toda a multiplicidade do existir. 

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4 respostas para “Salvador: racismo e aquilombamento em uma tarde de domingo”

  1. Nossa, uma escrita tocante que expressa uma dor e uma realidade cruel vivida pelo povo preto cotidianamente por essa estrutura racista que segrega, mata, oprime e tenta apagar pessoas.

  2. Avatar de Wilson Santos de Alcantara
    Wilson Santos de Alcantara

    Seu texto tem uma narrativa excelente, me fez imaginar a cena e me constranger com tamanha bizarrice racial.
    Mas neste caso o apoio das pessoas se sobressai ao ocorrido, que nem vale a pena descrever novamente, mas mostra como pode ser solidarios a injustiça, racismo e qualquer tipo de
    preconceito ,e Deus nos fez a sua imagem e semelhança, o preconceito é coisa “humanos não humanos”, o mínimo que te.os q ter ao próximo é o respeito

  3. Avatar de Ericles Manoel Paciência de Jesus
    Ericles Manoel Paciência de Jesus

    Muito emocionante esse texto. É de uma sensibilidade e empatia incrível. Obrigado por nos oferecer esse relato tão importante e reflexivo!

  4. Avatar de Fernanda Monteiro Balthazar
    Fernanda Monteiro Balthazar

    Fê, que texto maravilhoso, sagrado e profundo! Você tem o dom de colocar em palavras, através da escrita, acontecimentos, sentimentos, reflexões, crescimento e muito mais!
    Seu olhar amoroso e potente é capaz de captar o explícito e o implícito. Fernando mais uma vez, teve sua alma rasgada por um racismo cruel e sem razão alguma! E teve também a oportunidade de se sentir amado, respeitado e pertencente ao grande drupo de pessoas que se juntaram a seu favor. Quantas conexões entre a multiplicidade de existir este cretino desse homem proporcionou através de sua prepotência, racismo, egoísmo…etc… espero muito que sim! Que o ocorrido tenha pelo menos plantado uma semente de realidade neste homem! Que o reflexo negativo de suas ações faça ele enxergar além do próprio umbigo!
    Fê, nunca permita que ninguém atrapalhe este seu dom de olhar criterioso, amoroso, justo e reflexivo que se manifesta em suas ações e sua expressão através das palavras.
    Parabéns e muito obrigada!!🥰

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