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Foda-se o meu estado civil: o dia que eu quase morri de rir!
Atualizado em

(ou: a herança inflamada da minha gargalhada)
– ¿Cuál es tuyo estado civil?
Foi a primeira pergunta que me fizeram no Caribe.
Sim! O primeiro lugar que visitei no Caribe foi um hospital que, graças à Nanda do passado, eu tenho, porque, entre seus milhões de obrigações em busca de um pouquinho de prazer, ela fez esse seguro.
Ela sabia que estava colocando na mochila aquele pacotinho de culpa cristã porque não sabia como desapegar.
Tirou o prazer e colocou a culpa em seu lugar, certa de que o prazer, quando eu precisasse muito, apareceria no meu caminho. Ela fez isso muitas vezes nos últimos 5 meses, enquanto fazia e desfazia sua mochila para organizar e seguir viagem, outra vez e sempre.
Já a culpa… ela realmente não via utilidade, mas sabia o quanto me custaria caro.
Ainda assim, não conseguiu desapegar.
Então, a escolheu para ocupar um espaço significativamente grande, e pesado, daquilo que carrego: uma mochila com tudo o que tenho.
E, todos os dias, sigo me questionando: do que realmente preciso?
Se me dou de menos ou demais?
Porque agora tenho muito mais roupa de frio do que de calor.
Pra que estou me preparando, se vejo meu corpo vibrando quando está perto do mar?
O mar do Caribe!
Tá tão perto e tão distante.
O primeiro lugar que conheci no Caribe foi um hospital, onde fui porque tive uma inflamação na garganta há mais de uma semana, depois de uma crise de riso.
Sim! Eu poderia morrer de rir! Hahahahahahaha.
Em uma cidade da Latinoamérica que mistura feitiçaria e política de um jeito confortável e prazeroso para mim, nos dias mais frios da minha vida nômade, o meu riso rompeu barreiras físicas, geográficas, culturais, políticas, transgeracionais e, acima de tudo, espirituais.
Era uma segunda-feira fria de Bogotá, quando senti começar a arder meus fogos internos, a quimica interior do que se opõem e se devora dentro de mim. Ouvi a coisa mais absurda da minha vida nada comum. E ri a ponto de rasgar a minha garganta.
Sério: mantendo a postura de Dr., o médico me examinou e constatou que a gargalhada me inflamou a base da língua, o que estava irradiando para a garganta.
“Me feriram a língua tentando silenciar a minha voz, doutor… e eu ri. E me feri.
Tem mais de uma semana e fiquei esperando melhorar, mas a minha cabeça me fez crer em absurdos.
Agora não posso engolir mais nada.
Até a minha saliva me machuca.”
Depois de me examinar e tocar, ele me prescreveu uma injeção e alguns medicamentos.
E, se deixando humanizar brevemente, quis saber da fofoca que provavelmente viraria o caso do dia:
“Acredito que o que te disseram que te causou isso tudo foi muito absurdo”, disse o Dr., contido e curioso, porque isso é absurdamente cômico e triste!
Eu sei.
E nunca esqueci: “Não temos ainda pastilhas que curem feridas ancestrais.”
Mas o corpo é sábio, e o meu fez uma catarse, naquele dia.
Enquanto o pobre homem que me falou o grande absurdo me olhava assustado, numa tarde de segunda-feira em Bogotá.
Segunda é dia de Exu.
Acordei cedo, fiz meus rezos e acendi uma vela e um incenso pra Exu Mulher: Maria Padilha, Senhora que reina em meus caminhos.
Ainda que morando em hostel, preservo meus rituais que me conectam comigo.
Não posso esquecer de quem sou, ainda que eu mude o tempo todo.
Caminho, não porque estou ferida. Caminho porque estou me curando. E me movimento com gentileza.
Ele tinha “terminado” comigo porque eu sou feminista.
Com todas as palavras.
Ele disse isso com a própria voz:
“Posso suportar tudo. Menos isso. Feminismo, não. Eu jamais me relacionaria com uma feminista.”
(E tudo isso porque eu disse que uma atitude dele me incomodou.)
Faço uma pausa aqui pra lhes contar que estávamos vivendo um encontro maduro, eu chegando aos quarenta, ele com cinquenta.
Dois adultos latinoamericanos, fudidos entre dívidas, tentando recuperar o “tempo perdido”.
Agora conscientes de que caminhamos por anos no sentido oposto ao que nossa alma pedia, tentando, ainda assim, acertar os passos como alguém de olhos vendados num lugar desconhecido, tentando alcançar um lugar confortável que nem referência temos: dois adultos comuns da latinoamérica.
Passávamos os dias entre manter o foco no trabalho e tentar nos distrair das crises existenciais.
Beijos quentes.
Noites de amor.
Dormir de conchinha.
Assumindo totalmente nossa vulnerabilidade emocional, sem performar.
Confessávamos a nós mesmos o impacto de amores breves que mudaram nossas vidas.
Sem ciúmes.
Sem ego inflado.
Estilhaçados demais pra isso.
Queríamos só ser importantes pra nós mesmos. Comer. Trabalhar com alegria. Pagar contas. Escrever. Respirar e desfrutar de um breve encontro.
Nos conhecemos no hostel onde cheguei sem prazo, sem plano, só com vida.
Nos encontramos, nos escutamos, nos tocamos.
Fizemos uma putaria cheia de amor e carinho num quarto de hostel onde ele já dormia comigo havia duas semanas.
Como eu viveria isso se não fosse o feminismo?
“O feminismo quer liberdade demais!” – disse ele.
Eu repassei todas as nossas conversas na cabeça. Não encontrava uma fala machista que revelasse essa identidade.
Fiquei encarando ele, achando que era piada.
Mas ele estava sério. E irritado.
E então…
Eu ri.
Gargalhei forte, segurando o cigarro, numa rua fria de segunda-feira na América Latina, onde política e magia se misturavam.
Era surreal. E era real.
A magia que eu via nos livros, nos museus, nas praças e nos relatos dos bogotanos agora era comigo.
No meu corpo.
Na minha história.
Senti a fogueira arder de novo.
Ah, esse calor eu conheço bem!
Já me queimaram tantas vezes só por falar.
Por dizer não.
Por ter opinião.
Por ser inteira.
E mais uma vez alguém não soube conviver com a minha liberdade.
Mais uma vez alguém quis limitar o tamanho da minha existência.
Quando alguém diz que sou “demais”, lembro do Rio Tapajós, em Alter do Chão.
O maior aquífero natural do planeta.
Ninguém diz que é “água demais”.
Ninguém tenta conter um rio.
Ninguém vai me conter.
Ele tentou:
“Não dá pra gente ficar junto porque você é feminista.”
Gargalhei como uma pombagira queimando na fogueira.
Mas, dessa vez, não tive medo.
Ri.
Ri alto.
Ri descontrolada.
Eu não estava rindo dele.
Nem de mim.
Eu estava rindo da situação.
Da ironia.
Do absurdo.
Ele me olhava, tão perplexo quanto eu.
E isso só me fazia rir mais.
A gente nem tinha definido o que era aquilo.
E mesmo assim…
…terminou porque minha liberdade era “demais” pra ele.
Ah, não. Que preguiça!
Eu ri.
Minha barriga doía.
Tentei conter.
Mas o riso rasgou o ventre, explodiu na garganta, inflamou a língua.
A língua, essa que muitos dizem ser ácida, era agora o altar da minha liberdade e da minha dor.
Sabíamos que não era pessoal.
Eu sabia que ele não era simplesmente um arrombado, um tarado, como se diz em espanhol. Ou talvez seja!
E te juro que isso não é querer passar pano pra macho.
Compartilhamos muito da vida.
Suas ideias não eram de um machista escroto.
Era o machismo estrutural, claro. Um homem branco, hétero.
Mas, como amigos acima de tudo, porque sabíamos que esse encontro era passagem, não destino, dividimos nossos piores medos e nossas maiores feridas.
Eu sabia que ele acreditava mais no que contaram sobre ele do que em si mesmo.
Assim como eu, tantas vezes.
Mas ele tocou nas minhas feridas.
E, pela primeira vez na vida, a catarse foi de alegria, ainda que cheia de perplexidade.
Não ri dele. Ri da situação.
Ri até conseguir me conter, muito tempo depois.
E conversar com ele sobre aquilo, por respeito a mim.
Ainda que, pra isso, eu tivesse que fazer o que prometi nunca mais fazer: explicar o óbvio.
Comecei a falar com ele, irritada, porque tudo começou quando ele tentou me “demarcar como território” diante de outro homem (tenho uma crônica com essa história, vou postar depois).
E eu não aceitei.
Então ri, porque sabia que, mais uma vez, eu teria que saber balancear minha força entre a suavidade de uma borboleta e a fúria da mulher búfala que sou.
Porque algo em mim buscava essa cura.
“O que lhe incomodava não era o feminismo.
Era a minha voz.”
Pela primeira vez, algo me fez lembrar da minha avó fora de um bar, fora de uma festa.
O que o incomodava era a liberdade que me separa da minha avó.
Da minha avó materna, em quem morei enquanto era um óvulo no ventre da minha mãe.
Minha avó Maria sonhava com a liberdade.
Seus sonhos eram tão lúcidos que me fazem acreditar que ela chegava a tocá-la através deles.
Seu ato de rebeldia era dançar.
Todas as vezes que estou em um bar, sozinha, desfrutando da minha vida adulta, lembro o quanto saltei nesse tema em relação às gerações anteriores da minha linhagem.
Lembro da minha avó contando que fugia de casa quando anoitecia para ir ao baile.
Não tinha pegação. Nem flerte. Nada.
Ela só queria dançar.
Saía quando escurecia e voltava por volta das 20h.
E tomava uma surra da mãe dela.
“Eu não me importava, minha filha, porque eu ia fazer isso outra vez. Fazia valer a pena.”
Sua liberdade era punida com violência.
Ela só queria dançar.
Mas apanhou até aceitar uma prisão que lhe custou o mais sagrado: os sonhos, o tempo, a saúde, a vida.
Depois de muitos desafios pela luta diária de viver, de comer, de encontrar algum jeito minimamente seguro de estar no mundo, entre fome, migração e violências, ela achou que tinha encontrado o amor.
Casou-se com meu avô.
Ela, vinda da repressão, da escassez e da dureza emocional de Garanhuns.
Ele, do sertão baiano, com a mesma sina.
Se encontraram em São Paulo.
Se casaram.
E ali ela foi encarcerada.
Pariu 9 filhos.
7 sobreviveram.
Meu avô não cumpriu o papel de pai.
Era alcoólatra, violento e infiel.
Adoeceu. E adoeceu todos à sua volta.
Minha avó viveu quase 70 anos, a maior parte deles com este homem.
O restante, com o fantasma geracional que ele deixou quando perdeu a luta da vida para o álcool.
Nunca vi minha avó dançar.
Só a vi dançar uma vez: quando jurava ao mundo que ia se curar da leucemia.
Dos quase 70 anos de sua vida, e de tantos causos que ouvi, o que mais guardo e lembro é dela desfrutando da liberdade e disposta a pagar pelo seu prazer.
Como eu.
Que pago por cada golinho de prazer que tomo no gargalo, dando gargalhadas até rasgar o que resta do patriarcado em mim, tentando me silenciar cotidianamente.
A diferença entre minha avó e eu?
Duas gerações.
Dois divórcios.
(E os dois são meus.)
E hoje, eu decido:
Não carrego mais essa herança na mochila.
Ela foi a primeira Maria a me ensinar que liberdade se conquista,
e que sempre vão nos cobrar caro por ela.
Então temos que desfrutar.
Mesmo que eu fosse tão pequena enquanto a escutava contando seus causos, como ela nomeava suas histórias, ela plantou em mim uma semente de esperança e liberdade que virou árvore frondosa.
Os frutos, eu mesma colho.
E compartilho com quem não tenta me limitar, porque sei o preço que pago diariamente pela minha liberdade.
A distância entre minha avó e eu é de duas gerações, dois divórcios (ambos meus), e uma gargalhada que me rasgou o ventre, a garganta e inflamou a base da língua, me fazendo buscar atendimento médico no Caribe com o seguro viagem que eu mesma paguei.
Sem lembrar de estado, do Estado, de estado civil, ou da relevância dessa informação quando tudo o que eu precisava era cuidado.
Essa pergunta também me fez rir.
Ando rindo do que parece absurdo, e é normalizado.
Mas não rio de histórias como a da minha avó, que ainda se repetem pelas periferias do mundo:
Mulheres que morrem enquanto seus sonhos são arrancados, como se fosse normal. Como se fosse louvável. Como se fosse o que Deus espera delas.
Hoje li que tivemos o ano com menor número de nascimentos dos últimos 50 anos.
Não estamos mais querendo normalizar que nos roubem a vida.
Não aceitamos mais que nosso estado civil, o Estado, os homens ou qualquer padrão nos silencie ou nos diga até onde podemos nos ser.
Ele, perplexo com a minha reação, se desculpou muitas vezes.
Mas isso me gerou o gatilho do “ciclo da violência”.
Então entendi: não há possibilidade de diálogo com quem eu precisei ensinar o óbvio, o respeito que eu dei.
Pude entendê-lo.
Aceitei as desculpas.
Mas agora, eu precisava cuidar das minhas feridas.
O médico me prescreveu dexametasona.
A enfermeira me mandou deitar para aplicar na minha bunda.
Vocês já tomaram injeção deitados?
É genial.
Você relaxa enquanto toma na bunda e se recorda que todo processo de cura começa com uma dor diferente da que está curando.
Um salve a todas as Marias nas encruzilhadas da vida.
Um salve à minha avó, que foi a primeira Maria a me ensinar que liberdade se conquista, e que sempre vão nos cobrar caro por ela, então temos que desfrutar.
Mesmo que eu fosse tão pequena enquanto a escutava contando seus “causos”, ela plantou em mim uma semente de esperança e coragem pra voar com a ventania.
E agora, eu entendo:
Liberdade não merece punição.
Porque não é ofensa para ninguém.
Um salve às Marias desobedientes, que se recusam a perder suas vidas.
E conter suas gargalhadas.
Viver é coletivo.
Mas a vida é pessoal.
É intransferível.
E cada um precisa viver verdadeiramente a sua.
Essa crônica é só um recorte da minha escrevivência.
Se quiser ler mais, me seguir, ou transformar sua história em liberdade,
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Porque a vida é pessoal. E não aceita ensaio.
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7 respostas para “Foda-se o meu estado civil: o dia que eu quase morri de rir!”

Arrasou mulher 👏❤️ não podemos deixar ninguém tirar oque conquistamos nossa liberdade e vivê-la 👏 e viva as Marias porque também sou uma delas com muito orgulho ❤️ viva intensamente sempre dando suas gargalhadas ☺️👏👏👏

Minha Maria linda!!!!!


Que texto lindo!
Ele vai do sutil ao denso, do leve ao profundo numa dança que hipnotiza…
Amei!




Subterrânea, voadora e deslisante hahahahahaa
lindezoooo


❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️





Etaaaa que bom te receber aqui!





lindezaaa
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